terça-feira, 20 de setembro de 2011

Há começo, não há fim.


O que governa o incontido desejo de saber?
    

A faca brilha ao luar.

Será uma faca moura
Vestida de poesia?

Ou será simples tesoura,
Nas mãos da jovem rainha,
Retalhando a fantasia
Ao findar  do carnaval?

Saltam no ar
Lantejoulas.

Há sangue cor de papoulas
Escorrendo no final?

Será  amante enciumado?
Será uma ladainha?
Será um beijo carmim
Soluçado na bainha ?

Nuvens recobrem a luz.
Nada mais ali reluz.
A cena perde-se ao meio
na escuridão que adveio.

Na alma um frio de marfim...
Há começo, não há fim.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Na praça quase deserta


Eu absorto numa interior conversa
Ela veloz na sua pressa.

Eu hesitante nos meus passos,
Ela elegante, jovem, decidida.

Nossas trajetórias se cruzaram
Numa diagonal insuspeitada.

Uma qual da flecha depois de disparada,
Outra retificada a todo instante.

Surpresos, melhor diria, contrafeitos,
tivemos de parar ao meio do vazio.
Gentil, lhe dei passagem,
E cada qual seguiu o seu destino.

Ela, não sei...

E eu a perguntar-me
Quem teria calculado o vetor do encontro fátuo?
Direção, distância a percorrer, velocidade,
Um passo maior, outro menor,
E quanto importa nisto
Quão maior a inquietação do atraso,
Ou mais complicado o pensamento?

Um desnível,  uma poça  (pois que chovera antes).
Um canteirinho sujo a contornar,
Um  pombo  aos  passantes desatento...

Qual, admita-se,  a causa próxima, ou a extrema
Da indevida
Intersecção das trajetórias?
Que  motivo ou senso  as disporia?

Ou será, agora penso,
Que tudo começou de traz pra frente

-- será, enfim, que tudo é assim na vida?—

Pela necessidade imperiosa do poema?

Fim de Outono


A brisa por um instante
calma
deixava intocado o que já fora visto,
quando o olhar da alma pressentiu
na tarde
um sentimento esquivo, um som calado,
um quase arrepio.

Rondava o dia como leve sombra que antecipa a noite.

Um pássaro cantou distante
Por perto balouçou no ar a folha amarelada.

E pronto, tangido pelo fim do outono,
foi-se o poema que se aproximava.

domingo, 18 de setembro de 2011

Poemas da Cidade - I


  
Poemas da Cidade - I

CALÇADA

Nenhuma platéia enxerga
A cena escandalosa
Na enxerga transparente
Da calçada desta rua.

Morreu uma jovem nua
Na cama de papelão
Ao seu lado dorme um cão.

O corpo foi removido
O animal enxotado.

Na cidade populosa
Quem pode estar comovido?


UM BANCO NA AVENIDA DR. ARNALDO.

Dorme estirada no banco
As mãos cruzadas no peito.
Um gorro cobre-lhe a fronte
Andrajos tampam seus pés

Na face um riso desfeito
Deixa ainda sua marca.

Com que será que ela sonha?
Um quarto escuro, um colchão?
Calor de vidros fechados,
Especialmente silêncio?

O que contaria ao divã
De um médico analista,
Se existisse no mundo
Que se diz civilizado?

Que símbolos revelariam
O silêncio e a escuridão
Nos mitos da humanidade?

Ou será que é diferente,
Já que nem conta ou existe?



sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Morre menino


Acho que era 1964. Não tenho certeza pois não encontrei o jornal, mas apenas um recorte. Então estudante,  respirava o ar criativo, libertário e nacionalista que nos oxigenava até o golpe militar. Os Centros Populares de Cultura. Solano Trindade. Teatro de Arena, Teatro Oficina. No nordeste Francisco Julião  e as  Ligas Camponesas.  O partido comunista.  Eu estava em meu período mais panfletário.  Dentre os poetas,  lia Maikovski e Neruda.  O pessoal de esquerda da Casa do Estudante, onde moravam  os  despossuídos da São Francisco que vinham de outros rincões,  editava periodicamente um jornal chamado O Grasno.  Seu editor  era o estudante Adolpho Mariano da Costa.   Depois advogado,  teatrólogo,  poeta,  escritor. Publiquei  ali a poesia que segue.
Ela  não contribuiu para as mudanças desejadas. Passados  40 anos,  as calçadas da  cidade continuam com crianças, homens e mulheres sem teto e sem futuro. Eu já não peço que se tornem bandeiras da rebelião, mas continuo, pelo menos, sugerindo  olhares para o seu mundo, tão integrado e tão separado daquele em que vivem os possíveis leitores de poemas.
Há pouco mais de um ano comecei as poesias da cidade de hoje. Ficam para uma próxima postagem.

MORRE MENINO
Vem menino! Levanta-te e anda!
Ah! Se eu fosse Cristo a fazer milagres...
Vem menino! Levanta-te e anda!
Que a calçada é fria e os jornais poucos,
Que a tua cama é cimento,
E  o teto não é teto,
É porta de Igreja,
Igreja fechada...
Vem menino! Levanta-te e anda!
Ah! Se eu fosse Cristo a fazer milagres...
Ah! Se eu fosse Cristo para abrir igrejas..,
Vem menino! Levanta-te e anda!
Vem passear as tuas roupas sujas,
Os teus farrapos, os teus pés descalços
Para toda a gente.
Vem passear o teu sorriso
De dentes pretos, dentes  quebrados,
Dentes cariados,  dentes caídos..
A tua face de olhos fundos
Amarelados
A tua face, sem cor nenhuma...
As tuas mãos,  sem carne alguma...
Vem menino! Levanta-te e anda!
Eu não sou de Cristo a fazer milagres,
Não tenho igrejas,  não tenho altares,
Não tenho cofres para reformas
De torres velhas...
Vem menino! Levanta-te e anda!
Levanta-te e anda como bandeira
A desfraldar-se pelas calçadas...
Recusa esmolas, recusa  esmolas,
Recusa esmolas, exige olhares,
Exige olhares;  põe-te a dançar
A dança da fome
Para que vejam pelas calçadas...
Exige olhares... Morre menino!
Que ajunte gente!  Que ajunte gente
A olhar a morte de olhos fundos,
De dentes pretos,   de mãos sem carne...
Que ajunte gente cheia de esmolas,
De caridades, de religiões...
Mas morre antes,
Mas morre antes que lancem trocos às tuas mãos...
Mas morre antes, as mãos vazias, as mãos fechadas,
As mãos sem carne, de ossos brancos...
As mãos sem carne, cor de sujeira...
As mãos fechadas às caridades,
As mãos fechadas, dizendo não!
Negando a troca de tuas noites
De  tua fome, de tua morte,
Pelas esmolas que compram tudo
Que escondem tudo, que são juízo,
Juízo eterno, de preço baixo,
Que abre as portas de igrejas caras...
Vem menino! Levanta-te e anda
E morre menino!
Com tua fome, com tuas dores,
Tua amargura – sem sepultura –
Como bandeira,
Bandeira  eterna,
Pelas calçadas... cheias  de  gente...