sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Morre menino


Acho que era 1964. Não tenho certeza pois não encontrei o jornal, mas apenas um recorte. Então estudante,  respirava o ar criativo, libertário e nacionalista que nos oxigenava até o golpe militar. Os Centros Populares de Cultura. Solano Trindade. Teatro de Arena, Teatro Oficina. No nordeste Francisco Julião  e as  Ligas Camponesas.  O partido comunista.  Eu estava em meu período mais panfletário.  Dentre os poetas,  lia Maikovski e Neruda.  O pessoal de esquerda da Casa do Estudante, onde moravam  os  despossuídos da São Francisco que vinham de outros rincões,  editava periodicamente um jornal chamado O Grasno.  Seu editor  era o estudante Adolpho Mariano da Costa.   Depois advogado,  teatrólogo,  poeta,  escritor. Publiquei  ali a poesia que segue.
Ela  não contribuiu para as mudanças desejadas. Passados  40 anos,  as calçadas da  cidade continuam com crianças, homens e mulheres sem teto e sem futuro. Eu já não peço que se tornem bandeiras da rebelião, mas continuo, pelo menos, sugerindo  olhares para o seu mundo, tão integrado e tão separado daquele em que vivem os possíveis leitores de poemas.
Há pouco mais de um ano comecei as poesias da cidade de hoje. Ficam para uma próxima postagem.

MORRE MENINO
Vem menino! Levanta-te e anda!
Ah! Se eu fosse Cristo a fazer milagres...
Vem menino! Levanta-te e anda!
Que a calçada é fria e os jornais poucos,
Que a tua cama é cimento,
E  o teto não é teto,
É porta de Igreja,
Igreja fechada...
Vem menino! Levanta-te e anda!
Ah! Se eu fosse Cristo a fazer milagres...
Ah! Se eu fosse Cristo para abrir igrejas..,
Vem menino! Levanta-te e anda!
Vem passear as tuas roupas sujas,
Os teus farrapos, os teus pés descalços
Para toda a gente.
Vem passear o teu sorriso
De dentes pretos, dentes  quebrados,
Dentes cariados,  dentes caídos..
A tua face de olhos fundos
Amarelados
A tua face, sem cor nenhuma...
As tuas mãos,  sem carne alguma...
Vem menino! Levanta-te e anda!
Eu não sou de Cristo a fazer milagres,
Não tenho igrejas,  não tenho altares,
Não tenho cofres para reformas
De torres velhas...
Vem menino! Levanta-te e anda!
Levanta-te e anda como bandeira
A desfraldar-se pelas calçadas...
Recusa esmolas, recusa  esmolas,
Recusa esmolas, exige olhares,
Exige olhares;  põe-te a dançar
A dança da fome
Para que vejam pelas calçadas...
Exige olhares... Morre menino!
Que ajunte gente!  Que ajunte gente
A olhar a morte de olhos fundos,
De dentes pretos,   de mãos sem carne...
Que ajunte gente cheia de esmolas,
De caridades, de religiões...
Mas morre antes,
Mas morre antes que lancem trocos às tuas mãos...
Mas morre antes, as mãos vazias, as mãos fechadas,
As mãos sem carne, de ossos brancos...
As mãos sem carne, cor de sujeira...
As mãos fechadas às caridades,
As mãos fechadas, dizendo não!
Negando a troca de tuas noites
De  tua fome, de tua morte,
Pelas esmolas que compram tudo
Que escondem tudo, que são juízo,
Juízo eterno, de preço baixo,
Que abre as portas de igrejas caras...
Vem menino! Levanta-te e anda
E morre menino!
Com tua fome, com tuas dores,
Tua amargura – sem sepultura –
Como bandeira,
Bandeira  eterna,
Pelas calçadas... cheias  de  gente...



2 comentários:

  1. Como é bom poder ler , que prazer descobrir que você é também escritor, que bonito Decio...é a expressão pura do que os olhos vêem, e sendo você um homem do centro por tantos anos e eu uma forasteira que muito aprendeu nesse mesmo centro, leio, e vejo as cenas tão bem ditas nesse poema assim tão real. Aceito de um bom grado imenso a alegria de poder ler isso.. Grata e feliz...Parabéns!

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